“Aos 15 anos meu pai me viu namorando na praça e ao chegar em casa fui recebida com socos e pontapés. Diagnóstico: três costelas trincadas, deslocamento da mandíbula...

Posted: | por Felipe Voigt | Marcadores: ,

Querido Ogro,

 Nem sei como começar, são tantas questões que me inquietam e perturbam que fico perdida. Tenho 30 anos, bem mal resolvidos. Acho que nasci na época errada, na família errada, no corpo errado...

.Sou do interior da Bahia, onde a palavra do pai é lei! Minha família toda é evangélica daqueles bem conservadores e as lembranças que tenho são de que tudo era errado, proibido e me levaria ao inferno. Aprendi a não desafiar as regras ou fazê-lo de forma a não ser descoberta e assim aprendi a mentir que, modéstia a parte, é o que faço de melhor.

 Aos 15 anos meu pai me viu namorando um garoto na praça da cidade e ao chegar em casa fui recebida com socos e pontapés. Minha mãe estava na igreja e fui socorrida por dois vizinhos que escutaram meus gritos, um deles médico, me levou para o hospital. Foi preciso dois homens para tirar meu pai de cima de mim. Diagnóstico: três costelas trincadas, deslocamento da mandíbula, escoriações e contusões por todo o corpo.

 No hospital fui tratada como vagabunda. A notícia espalhada era que meu pai tinha me encontrado na cama com um cara casado. Minha mãe só sabia se repetir dizendo que ele tinha feito aquilo pra me educar, que eu não devia ter feito o que fiz e eu sem entender o que de tão grave tinha feito para receber aquilo. Voltei para casa com a sensação de estar entrando num inferno. Minha mãe se dizia mortificada, minhas irmãs riam de mim descaradamente e minhas melhores amigas, todas da igreja, foram proibidas de falar comigo. Aguentei isso por dois anos até concluir o ensino médio. Nesse tempo engordei quase 30 quilos, virei uma rebelde – na minha cabeça, rebelde com causa.

 Aos 17 anos sai de casa. Vim para Brasília com a mala e uma proposta de emprego como babá. Tive sorte de passar no vestibular e seis meses após sair de casa estava morando numa república estudantil e aí comecei a viver tudo que eu nunca pude! Beber, fumar, cheirar, pra mim isso era o supra-sumo da liberdade, fiz tudo, com muita fome e ansiedade.

 Meu único problema foi, e ainda é, o sexo. Adoro tudo que diz respeito a sexo, sou ultra libidinosa mas na hora H... não consigo sentir nada! Leio tudo que aparece sobre o assunto, me mostro a expert, mas a transa pra mim é uma negação. E não é por falta de esforço. Já tentei de tudo: transei com mulheres, fiz um ménage a trois, realizei fantasias, mas é tudo vago, fico oca. A cabeça viaja e me vem a questão: “por que estou fazendo isso?” e continuo a fazer. Não consigo ter um relacionamento longo com ninguém. Sinto-me usada, gastada, é como se eu fosse forçada e invadida pelo outro por mais “apaixonada” que eu pense estar.

 Nunca gozei com alguém, com o toque de outro, nunca. Não é nada físico, já investiguei. A cabeça também já foi analisada, medicada e controlada. Tô no fundo do poço. Parece tão banal depois de ter lido tantas histórias em seu site mas, pra mim, tá sendo questão de vida ou morte.

 Sou sozinha. Tenho um bom emprego, casa, carro – essa parte da vida tá bem encaminhada. Não tenho relação com ninguém da minha família desde o episódio acima relatado, apenas contatos ocasionais por telefone com uma sobrinha que me mantém atualizada. Tenho crises depressivas perenes que oscilam entre a euforia e destemor a uma profunda escuridão e inércia (que é como me encontro no momento). Há dois anos não me relaciono com ninguém, perdeu o propósito. Estou há quase um ano apaixonada platonicamente por um colega e não consigo me aproximar, afinal já passei por isso umas mil vezes. Gostaria de ser corajosa o suficiente para por um fim em tudo, mas não tenho peito pra assumir as responsabilidades.

 Me sinto como uma adolescente que não consegue discernir amor de carência e vou evitando dar vazão a qualquer um desses sentimentos seguindo os dias emudecida, sem cor, sem sabor sem viver. Não espero uma resposta salvadora, acho que só precisava desabafar.

 Obrigada por dar voz a tantas dores, parabéns! Você é o cara.

Sinceramente, sua mais nova fã.

Minha cara Tieta;

Seu pai foi um tremendo filho da puta, hein? Evangélicuzinho de merda esse... Nessas horas dá vontade de mandar enfiar a porra da Bíblia no cu. De que adianta ser um “homem de Deus”? Pra mostrar pros outros que tem fé e que tem a alma salva? Vai lá chupar o pau do pastor, então!

Justamente na fase onde você estava formando seu caráter social, aprendendo a questionar o ambiente onde vivia, o idiota te repreende com tamanha truculência por um ato inocente e natural em qualquer adolescente: a descoberta da sexualidade e a vontade de dar vazão aos desejos. Talvez se tivesse acontecido uns dois anos depois, sua postura seria diferente. Mas estava justamente nessa porra de fase de formar um tipo de caráter sensorial da sociedade que perdura pela vida toda. Os 15 anos são fodas, mesmo! Mais até do que os 18...

Resultado: você passou a repudiar qualquer presença sexual na sua vida.
É, apesar de sempre usar o sexo como uma arma, você o recusa como algo vital e necessário.

Justamente por tratá-lo como descartável, por fazer dele algo meramente ilustrativo. Foda-se que tenha feito putaria com mulheres, com homens, com poste ou pés de mesas: você simplesmente não quer que o sexo tenha um fator predominante em suas relações e, consequentemente, em sua vida.

E sabe como dá pra saber disso?
Por você nunca gozar!

Você ainda sente, inconscientemente, que será repreendida com porrada por deixar o tesão fluir. Você disse que se vê como uma adolescente porque é a verdade: ainda é aquela menina namorando na praça, que apanhou pra caralho do boçal ignorante do pai e foi publicamente exposta como uma “vagabunda”.

Justamente por isso, por ainda ver o mundo como sendo aquele ambiente proibido e hostil é que você não consegue se desapegar de certas amarras que te prendem àquela praça. Por isso aprendeu desde cedo a mentir: é uma forma de não ser punida e, ao mesmo tempo, conseguir “sambar” na cara da sociedade e montar um personagem ideal. Era e é a fodona que pouco se importa com o que os outros falam, mas no fundo é o que mais te incomoda. Ainda dói sequer ser vista como a vagabunda que “deu pro cara casado” e foi linchada.

Por isso você sustenta a personagem: é fodona, dá pra caralho, curte qualquer coisa que vier, bebe, fuma, cheira... enfim: é “livre” daquele inferno.

Mas ainda está atada à praça.

É uma porra isso: a presença do pai em cada homem que procura. Ou você busca tipos parecidos pra tentar entender e se revoltar menos, ou busca perfis completamente diferentes justamente pra esfregar na cara e alimentar a revolta.

Tanto é que adora um amor platônico, não? A ausência do sexo faz disso algo menos recriminante aos olhos da adolescente aí dentro. Mas é só chegar a porra da porra e tudo fode sem foder!

Enfim: o que há de ser feito?
Basicamente: precisa tomar no cu!

Ou você assume que vai ter de se foder ao tentar algo diferente e ainda assim aceita as conseqüências ou vai ficar sempre nessa oscilação sentimental. Não tenha medo de se foder pra valer em uma relação. Isso é normal, todo mundo se fode de algum jeito. Mas uma hora a gente acerta. E você já tem bagagem pra acertar, não?

Precisa olhar para trás pra conseguir olhar para frente. E se for preciso chacinar os demônios lá trás, então o faça! Pegue tudo o que te incomoda e taque fogo. Faca uma fogueira mental, queime naquela mesma praça todos os vestígios do que tanto te machuca e te furta o ar. Pare de sempre recorrer à adolescente traumatizada. Deixe-a livre dentro de você...

Esqueça que deva perdoar seu pai ou sua família pelo que fizeram. Apesar de ser dolorido isso, se viver sempre esperando chegar o perdão em você, irá perder um puta tempo com isso. O que precisa é mostrar que, independente do que te aconteceu, conseguiu sobreviver e ter uma vida sem eles, que encontrou alguém que veja toda essa sua história e, ainda assim, aceite o “desafio” de viver uma relação séria contigo, que te entenda, que não te julgue e te ajude a superar todos os percalços.

Eles foram errados, não você. Agora que se fodam: perderam a chance!

Todo mundo traz dores e sombras dentro do peito. E não há dor mais ou menos nobre do que a outra: o que você sente é real, é verdadeiro, te joga no chão pra valer. Por isso mesmo que precisa conviver com isso. Achar que se desfazer dessas penumbras vai te fazer melhorar é um grande erro.

Ter todo esse paradigma só te fez represar a mulher que precisa ser: de fato, livre.
Eu diria até selvagem, por que não? Já está na selva, mesmo... Aprenda a usar a luz, mas saiba que caminhar entre a escuridão é o que faz toda a diferença.

Continue a beber pra afogar um pouco as mágoas. Leia algo que aparente ter sido escrito pra você. Ouça uma música que te defina melhor do que você mesmo poderia definir. Escreva algo denso, algo cruel sobre sua dor. E depois respire.

Se permita ser “normal”. Não tenha medo da vida aqui fora.
Ela é uma merda, mas a gente adora assim mesmo.

6 comentários:

  1. Lenita de Paula disse...
  2. Não tenho nada a acrescentar ao que o Felipe disse para a "tieta", mas preciso comentar: Fe, vc se supera! PQP!!! Começo a ler os relatos do querido ogro e pensando: "rah, quero ver o que o Felipe vai soltar pra essa história" . São sempre coisas tão profundas, intimas e algumas muito doloridas de contar (e de ouvir)... E esse danadinho sempre sabe escrever (laudas) pra atender, responder, confortar... Parabéns, Fe! Obrigada por me ajudar por meio de tantas outras eus.

  3. Leticia disse...
  4. Mais uma vez como sempre, é aquele finalzinho brilhante do ogro que faz arrepiar!
    Resposta brilhante pra uma história que não tem luz.
    Queria Tieta, mais não posso dizer: Confie no nosso ogro, ele sabe. Com certeza essa resposta fará toda a diferença na sua visão de tudo.
    Seja mais feliz, se ame, se eleve, você pode tudo, basta querer.
    Beijos e Parabens pro nosso ogro.

  5. Evelyn Paparelli disse...
  6. Felipe, vc é o cara!!! Concordo 100% com Lenita...falar o que depois do seu comentário??? Voce tem sem as palavras perfeitas pra cada uma de nós!
    E vc Tieta, se seguir a risca tudo que ele disse, vai se "recuperar" rapidinho, comigo foi assim...

  7. Camila Silveira disse...
  8. Tudo isso ocorre por você ainda estar presa ao seu passado. Como vc mesma disse "devo ter nascido na familia errada", e foi isso mesmo que aconteceu. Não precisa perdoar só pq é seu pai,não precisa ter contato só pq eles são sua "familia" (o que ao meu ver, não são). Vc já se separou deles fisicamente, agora falta a separação psicológica e quando isso acontecer, vc conseguirá se soltar sexualmente.
    Abraços e boa sorte!!!

  9. Tieta disse...
  10. Apropiadamente apelidada de Tieta, quero dizer que já havia percebido que o Ogro é muito especial. Pretendo reler estas laudas algumas mil vezes para ver se internalizo algumas informações. Nada a acrescenar a palavras tão bem colocadas. Tô aqui pro que der.
    Valeu!

  11. Anônimo disse...
  12. Nossa sua história é incrível menina,vc deo o troco de certa forma,se fez sozinha e conquistou sua independência,depois de suas conquistas de se livrar dessa família,vc pode viver conforme suas próprias regras,tenho certeza que depois do que o ogro te aconselhou,vai ser um pulinho pra vc conquistar a sua total liberdade desse passado,tenho certeza disso... boa sorte querida Tieta :*

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