“Eram três rapazes, me arrastaram até o quarto e lá fizeram de mim a sua festa, o seu fim de noite”.

Posted: | por Felipe Voigt | Marcadores:

Querido Ogro:


Há cerca de 20 anos minha família se mudou para pra fora do Brasil e eu, sempre muito independente, fiquei morando sozinha com 17 anos. Um ano depois, em uma sexta-feira, eu e uma turma de amigos do cursinho nos encontramos em uma lanchonete dentro do shopping. Amigos dos amigos também vieram, eu não conhecia a todos ali. A noitada se acabou e fui pra casa.


Ao chegar no portão de casa não pude encontrar as chaves na minha bolsa, estranhei, mas achei que tivesse perdido. Peguei uma cópia escondida em um vaso e entrei. Mal coloquei os pés na sala e fui agarrada. Com as mãos na minha boca, ele me impediu de gritar. Eram três rapazes, três desconhecidos na minha sala, três dos "amigos" da lanchonete que haviam roubado a chave de dentro da minha bolsa em uma ida minha ao banheiro!


Me arrastaram até o quarto e lá fizeram de mim a sua festa, o seu fim de noite. Toda vez que eu tentava empurrar, ou gritar, sua navalha me cortava a pele... tenho cicatrizes até hoje por todo o corpo, em todos os membros. Logo que me jogou na cama, o primeiro dos três foi me pedindo pra eu tirar a roupa. Como não obedeci, levei a primeira navalhada quando ele rasgava minha calça. Foi muito bruto ao tentar penetrar na posição mamãe-papai... eu era virgem e me doeu muito mais do que eu imaginava que fosse doer. Ele foi breve, gozou muito rápido, e eu dei graças a Deus (Deus esse que eu nem acreditava existir, sempre fui atéia, mas naquela hora senti a necessidade de ter fé, eu queria viver...só isso).


O segundo já me queria de quatro. Esse então... me doeu a alma! E gritei e dá-lhe navalhada, e então chorei calada, até que ele terminasse... O terceiro não fez exigências e tinha pressa, tinha medo... eu também não tinha mais forças pra resistir e já tinha meu corpo todo retalhado. Ele foi breve e começou a ter uma crise de arrependimento e pedia aos outros dois para irem embora, já tinham feito o que era o "combinado" entre eles, era hora de ir. E assim se foram, depois de três horas me abusando, me machucando... me marcando para o resto da vida.


Quando os três se foram eu fiquei ali, por alguns minutos até que o carro deles fizesse barulho e eu tivesse a certeza de que eles não estavam mais por perto. Me vesti suja mesmo, de porra e de sangue fui até a esquina telefonar. Eu chorava muito e sangrava demais também.


Eu não tinha telefone em casa, então fui até o próximo telefone publico e liguei para meu namorado, ele então veio me buscar, me levou até uma delegacia onde dei queixa e passei por exames de corpo-delito, etc. Dois dias depois ele não era mais meu namorado, pois acreditava que eu havia mentido, que eu era safada, e convidei os três sujeitos para uma “festinha”. A polícia nada fez e o pai do rapaz o mandou para fora do país e ficou por isso mesmo.


Pouco mais de um mês após o estupro, não menstruei e, é claro, só podia pensar no pior. E o pior aconteceu: eu estava grávida e Deus sabe de qual dos três! Eu não tive dúvidas sobre o que queria fazer: queria abortar imediatamente! Não queria uma parte dele dentro de mim (sem pensar que a outra parte era eu, era meu filho também), não tinha estrutura emocional nem financeira naquele momento e, honestamente, não pensei nem sequer por um segundo que deveria ter aquele filho.


E sendo assim busquei a Justiça, para que conseguisse uma autorização com um juiz para fazer esse aborto de formas "legais". A coisa não aconteceu e não pude (nem queria) esperar. Eu mesma encontrei uma clínica clandestina e marquei um consulta. O lugar mais parecia um açougue, mulheres esperando pelo abate... terrível.


Sai de lá no mesmo dia e, uma semana depois, estava sendo internada em um hospital com uma séria infecção no útero, causada pelo aborto. Febre alta, dores, parecia que os "efeitos colaterais" daquele estupro iam me perseguir para o resto da vida, eu vivia um inferno e não conseguia sair dele.


Ainda senti o problema na pele quando, anos depois, tentei ficar grávida do primeiro filho e não conseguia. Logo pensei que estava sendo castigada pelo aborto que havia feito.
Sinto essa culpa até hoje, vou carregar comigo para o resto da vida, não ha nada que vá me fazer mudar de ideia... Mas não soube fazer diferente na época, portanto não condeno quem faz e sou totalmente a favor do aborto, porque quanto mais dentro da lei a coisa funcionar, menos riscos de problemas como a infecção que eu tive irão acontecer. Tem mulheres que nunca mais podem ter filhos por causa de abortos mal feitos.


Essa péssima experiência, péssima maneira de perder a virgindade (não que eu fosse casar virgem), me transformara na mulher que sou hoje. Uma mulher forte, mas não amarga. Aprendi a lidar com o trauma da maneira que mais me foi fácil seguir a vida sem permitir que esse "evento" me a estragasse.


Ao invés de me bloquear, me fechar para os homens, fiz o contrário: passei a literalmente “dar” pra qualquer um que eu tivesse vontade. O corpo pra mim é apenas um objeto (lavou tá novo!). Objeto de prazer, sim, mas sexo é apenas sexo, não confundo com amor, com respeito... essas outras coisas fazem parte da alma, não do corpo. Certo ou errado, foi assim que superei o trauma e funcionou pra mim, como se quando alguém bate o carro tem que dirigir logo pra que não fique traumatizado.


Eu queria apenas dividir isso no seu blog para que outras mulheres tenham coragem de falar sobre o problema caso tenham passado por algo parecido. Seja com você, com alguém de confiança ou com um terapeuta. Obrigado!


Minha cara e querida cara,

É sempre muito válido dividir isso. Vale pra você colocar pra fora algo que incomoda, vale como incentivo para outras fazerem o mesmo, vale para que outras abram os olhos e fiquem mais atentas para um problema que é mais presente do que imaginamos. Teu relato é forte, é real, não tem fantasia nem demagogia. E é isso que precisamos ver para realmente entender o quão foda é uma atitude tão mesquinha e cruel.

Me deparo com essa porra toda semana, seja via imprensa, seja por conversa com amigos e familiares: sempre tem algum imbecil idiota do caralho se auto-afirmando através do sexo forçado. E confesso que tem me feito muito mal, mais do que o habitual. Até mesmo filmes em que haja um estupro na história eu evito assistir. Parece que me machuco de uma forma como se estivesse sendo estuprado também. Sério: tá bem foda lidar com isso. Talvez por isso demorei tanto pra postar seu relato. A cada linha, eu sentia uma navalhada. Mas tenho sentido essas navalhadas há anos e cada dia machucam mais.

Tenho irmãs, mãe, sobrinha, amiga, esposa, colegas, conhecidas... e sempre penso nelas quando algo assim acontece. E a cobrança para que estejam fora de risco parece que cresce a cada dia. Seja num mercado, seja voltando da escola ou do trabalho, seja mesmo em casa. E fico até chato quando exijo atenção redobrada. Parece até que fiquei neurótico quanto a isso.

Tenho medo de uma nova geração que está achando normal e natural o abuso sexual feminino. Não que seja “normal” ver pessoas mais velhas concordando com isso de certa forma, mas ver homens de 18 anos achando que isso é comum me causa medo demais. E quando encontram eco em mulheres, então, quase me falta o ar, tamanha indignação.

Sim, tenho visto muitas mulheres culpando outras mulheres por causa do estupro sofrido. Tacham de tudo quanto é nome, como homens sempre fazem. Mas é horrível ver uma mulher legitimando uma violência assim. É como se aceitassem a condição submissa imposta por um bando de homens inseguros, impotentes e incapazes.

O perigo vem do lado, vem da rua de trás, vem do colega de escritório, vem do estranho na rua conhecida... Casos de estupros estão cada vez mais presentes, acontecendo onde antes não aconteciam e estão cada dia mais perto de sua casa. Mulheres são abordadas em estacionamentos de supermercados, em ruas movimentadas do Centro, em avenidas do bairro, em shoppings...

Mas por que isso acontece? Acho que tem a ver com um termo - e uma postura - que pensei ter ficado no século passado, no milênio passado, mas não, está mais vivo do que antes: sexismo. Mais fortalecido e mais presente até. E por que? Por causa da emancipação feminina, que volta a ser um levante social contra as mazelas impostas por homens? Por causa da submissão masculina, que faz homens se voltarem contra a pressão feminina?

Quem nunca ouviu que uma mulher estuprada “provocou por usar roupa curta de vadia". Quem nunca ouviu isso? Ao saber que alguma mulher foi estuprada, sempre tem um idiota que diz: "Ah, mas ela provocou" ou "quem manda usar essa roupinha assim? Homem é homem, sabe como é...".

Não, não sei como é, não.
Se isso é ser homem, eu sou qualquer coisa, menos homem, então!

E qual policiamento deve ser feito? A mulher deve evitar usar determinada roupa, evitar se colocar em situação de risco? Não acho que seja por aí. É preciso, sim, evitar se colocar em situações que a deixarão vulnerável a um abuso desse tipo. Mas mesmo assim, pode acontecer às oito da manhã indo pro trabalho, ao meio dia voltando da escola ou às seis da tarde indo ao mercado. É relativo demais. O limite deve ser imposto pela pessoa que usa aquela saia e que trafega por aquela rua e não por aqueles que a vê passar. Se for assim, uma mulher usando uma blusinha nunca poderá passar na frente de um muçulmano, então?

Há de se policiar, sim, o pensamento dos homens que pregam esse tipo de cultura. Quando uma mãe ouvir um filho falando que fulana é vagabunda, ela deve repreendê-lo, sim. Se ele fala isso, os outros falarão da mãe dele, da irmã dele, da esposa dele, da filha dele... e aí? Cresci ouvindo isso da minha mãe: que assim como eu posso falar das outras, poderão falar o mesmo dela e das minhas irmãs.

É preciso vigiar o pensamento sexista desde o embrião. A mãe tem obrigação de dar exemplo para o filho e para filha, mostrar como uma mulher deve se portar, sem ser submissa, sem ser rebaixada ou renegada, cobrando e impondo respeito. O pai tem o dever de mostrar como um homem deve tratar uma mulher, o que realmente é atitude de homem.

E isso serve pra você, minha cara: se a vida te deu três monstros para marcarem sua pele e sua vida, devolva ao mundo três homens de verdade. Seja um filho, um marido, um namorado, um amigo: você sempre pode “compensar” e mostrar que, mesmo apesar das cicatrizes, é possível superar e crescer com isso. Eu mesmo venho aprendendo muito com mulheres que passaram por isso. E a cada troca, cresço um pouco mais e amadureço muito em pouco tempo. Sei que você consegue fazer isso, mesmo que não se dê conta às vezes.

Sei também que, até hoje, pensa que muito da sua postura está ligada ao trauma que sofreu. Mas é preciso se desprender desse estigma de traumatizada. Rasgue o rótulo que você mesma se impõe na hora em que o sufoco aperta o peito e cala a garganta. Até eu uso desse artifício quando quero alimentar um lado “coitadinho” meu. É horrível e temos de tomar no cu por causa disso.

Uma hora temos de aprender. E sigamos tentando, pois. Apenas não deixe que uma mácula manche toda uma vida. É injusto com você e com os poucos que você permite te cercar. Por mais que eu odeie o ser humano e a humanidade (com motivos reais e fortes pra isso), sempre busco as exceções.

Sejamos, assim, exceções de nós mesmos.

7 comentários:

  1. Anônimo disse...
  2. Querida !!!!
    Tú es forte !!!Parabéns pela coragem de compartilhar.
    O que posso dizer é que tens o direito de lutar, lutar por sua felicidade,dê o troco sendo forte,sei que tudo que dissermos é tão pequeno diante o que te passou,mas acredito muito mesmo que dentro ti exite a vontade de não desistir jamais. Forca !!!!

  3. Lenita de Paula disse...
  4. Cada vez que leio uma história como esta, fico muito desolada, desapontada e com o coração em frangalhos. Vejo uma mulher ser tratada como nada, como algo sem valor, descartável e com uma única função: se submeter.
    Pena que alguns homens e, surpreendentemente, muitas mulheres vejam assim. Nós mesmas, mulheres vítimas de violência sexual, nos colocamos assim por um período: "É pra isso que sirvo? pois é..."
    Mas é quando a gente muda, amadurece nosso "trauma" e consegue ampliar o que aconteceu conosco que fazemos a diferença.
    Concordo com o Felipe, a força de mudar esse comportamento, de ver a mulher como um pedaço de carne à disposição, está na educação. Temos a oportunidade de passar para nossos filhos, amigos, maridos, namorados,etc. uma maneira melhor de ver uma mulher, educar o olhar, o cuidar, o zelar...
    Só através da educação criaremos uma nova geração onde o respeito à mulher, ao ser humano, aos limites alheios, será natural, intrínseco...
    Um dos melhores livros que li sobre uma mulher, violentada sexualmente, que usou sua experiência para educar é "Desonrada" - um depoimento de Mukhtar Mai, que usou a polêmica em torno do seu caso, para montar uma escola para meninas, para que elas não ficassem sem o conhecimento que a ela foi negado.
    Acho que a cada pessoa que educamos, estamos tirando um violentador ou uma violentada do mundo. Ou, ao menos, um preconceituoso.

    Obrigada por dividir sua história!

  5. Gabrie Ziegler disse...
  6. Obrigada por dividir a sua história. Eu passei por coisas muito ruins também, que não digo aqui para não me expor, e também porque já faz quase 3 anos, prefiro esquecer, e muitas pessoas ficaram me culpando ao invés de me ajudar, depois que aconteceu. Parabéns pela coragem, pela força, e saiba que têm o nosso apoio e que lutamos por um mundo sem estupro, abuso, assédio nem violência sexual. :)
    G.Z.S.

  7. Anônimo disse...
  8. O que eu acho mais absurdo, repito ABSURDO, numa coisa dessas é o descaso total e completo das autoridades. É quase como um "bem-feito" estampado na cara. Como esses 3 ficaram impunes? COMO?!? Sinceramente? Se fosse filha minha e nada fosse feito, pode ter certeza que eu daria um jeito de cada um deles levar o mesmo número de navalhadas que ela levou. Não pela vingança, mas pelo simples fato de que, se um dia a consciência esquecesse, o corpo jamais os deixaria esconder a vergonha e o terror que essa moça passou.
    Mas, num país que acolhe e liberta terroristas e que tem como Presidente uma ex-querrilheira e sequestradora, não se pode esperar muito... infelizmente.

  9. Stela Cazelli disse...
  10. Ainda é tempo de você fazer valer os seus direitos, de resgatar pelo menos em parte a sua dignidade aviltada. O exame de corpo de delito deve ter comprovado que você era virgem e as navalhadas pelo corpo comprovam que você foi forçada. Que bom que se namorado se mostrou o covarde que é. Impossível com os ferimentos apresentados em seu corpo ter havido sexo consentido.
    Você entre coisas tem direito a indenização por danos morais e físicos e exigir que paguem um tratamento psicológico para você. Procure um bom advogado, na OAB pelo menos aqui no Rio existe um grupo de advogados mulheres que funcionam só para mulheres. Até porque uma mulher entende com mais sensibilidade e clareza o que aconteceu. Se não morar no Rio, procure em sua cidade. O fato de um dos rapazes ter saído do país, não quer dizer nada,pois um cara milionário foi preso na Áustria ou Austrália, pela Interpol por haver agredido um outro e reconduzido ao Brasil.Vá em frente com a ajuda de sua família e um advogado. Exija que as autoridades cumpram o papel para o qual recebem seus proventos. Não desista. Coloque na cadeia esses selvagens até para não estimulá-los a prosseguirem nessa bestialidade. Força, siga em frente e faça valer seus direitos, ande de cabeça erguida, afinal os que precisam se esconder são esses monstros. O dia em que cada mulher estrupada colocar a boca no trombone, fazer valer seus direitos através da justiça, o número de estupros irá diminuir. Até porque nós mulheres temos que lutar para darmos um mundo melhor para as que estão vindo. Você tem direito inclusive a cirurgia plástica, paga por eles, evidente, pelas marcas deixadas em seu corpo. As marcas do espírito serão pelos menos aliviadas através de um tratamento psicológico como já disse e pela justiça que será feita caso você decida dar o troco que eles merecem.
    Boa sorte e não desista,
    Com carinho, Stela Cazzelli

  11. Anônimo disse...
  12. Ai q foram os monstros que fizeram isso vai pagar

  13. Arcos mg disse...
  14. mulher, voce e um exemplo de supéraçao, e os caras que fizeram isto com voce deveriam ter pagado pelo crime no minimo, iclusive se fosse familiar meu ou filha, eu cortaria eles em pedacinhoa para que nao fizesse mais mal a nenhuma moça da face da terra e serviria de exemplo para os proximos que oensassem nisto!!
    Fiquei revoltado e assustado com tanta crueldade que fizeram contigo,a policia consegui ao menos achar o culpado?
    Deus vai te abençoar e ainda nesta vida voce ha de ser muito feliz e ter muitas alegrias para guardar em sua lembrança!!

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