“Comecei a me prostituir aos 7 anos, vendida por uma tia. Tive minha infância roubada por quem deveria me proteger.”

Posted: | por Felipe Voigt | Marcadores: ,
Querido Ogro...

Tenho 33 anos, sou casada, tenho um filho e uma vida bem tranquila. Mas minha vida nem sempre foi assim... Comecei a me prostituir aos 7 anos de idade, vendida por uma tia. Tive minha infância roubada por quem deveria me proteger.

Minha adolescência foi regida com muito sexo e cocaína, enfim, uma verdadeira loucura. Fui atendida algumas vezes por psicólogos do juizado de menores, mas nada adiantava, eu não sabia explicar porque eu fazia aquelas coisas e tinha medo de denunciar minha tia. Aliás, eu nem sabia que podia...

Aos 20 anos tive uma chance de mudar de vida, me casei e hoje tenho uma vida de princesa, não me falta nada. Mas, de tempos em tempos, sou puxada para baixo por uma força maior que eu, sinto como se aquela menina voltasse e jogasse na minha cara todas as mazelas que passei... Sinto-me novamente desamparada, novamente traída, morro de medo de invadirem minha casa e me levarem de novo pra aquela vida imunda.

Tenho sonhos agitados que, mesmo depois de acordada, tenho dificuldade de entender onde estou... Sinto ódio de mim por ter vivido tudo isso, sinto um nojo imenso do meu corpo, tenho uma raiva de mim. Antes, quando eu entrava nessas crises, ficava nervosa, quebrava tudo dentro de casa, gritava, chorava, mas aprendi que isso não é de Deus e passei a me cortar. Na primeira vez que fiz isso, quando acabei, consegui ver que estava no banheiro da minha casa, me senti mais calma e voltei a dormir. Agora todas as vezes que sou tomada por esses sentimentos, fujo pras minhas lâminas.

Estava até fazendo terapia, mas me senti iludida, pois eu achei de verdade que esqueceria tudo o que me aconteceu, mas infelizmente isso não está acontecendo, então não vou mais. Fora que minha psicóloga vive minimizando minha história, ela vive falando de pessoas que "sofrem de verdade", que tenho tudo pra ser feliz e não aproveito, que tenho que sair do "modo passado". Enfim, me sinto frustrada por não conseguir esquecer e dar a volta por cima... a cada pesadelo me sinto multilada, condenada a reviver cada detalhe daquele inferno que foi minha infância e adolescência.

Sei que me cortar também não é a maneira mais correta de lidar com isso, mas não sei o que fazer mais pra aliviar esse ódio todo, essa dor imensa. Peço a Deus todos os dias pela morte, me sinto um zumbi, uma morta viva, não sinto prazer em nada, tudo o que faço, faço por amor ao meu filho e marido, não quero que eles sofram por causa do meu passado imundo. Mas a cada dia que passa tem sido cada vez mais difícil continuar vivendo. Me ajuda, por favor, me salve de mim mesma...


Minha querida desesperada;

Imagino que esteja foda pra caralho lidar com os fantasmas do passado, mas teremos que lidar com um de cada vez. Entendo que o desespero imponha imediatismos, mas peço que leia uma conversa que tive hoje com uma pessoa que me procurou há tempos com algo que aconteceu a ela na adolescência e causou um trauma que perdurou por anos, assim como em você perdura:

- Com relação ao que te aconteceu, isso tem te incomodado? Amenizou? Volta às vezes a assombrar? Como tem lidado com isso?

- Honestamente? Depois de ter me aberto com você e toda sua ajuda, a coisa foi sumindo da minha memória completamente, ao ponto de outro dia me pegar falando no assunto sobre outra pessoa, como se aquilo nunca tivesse ocorrido comigo. Tudo mudou, perdi medos, muitos medos em vários aspectos. Até mesmo posições no sexo que pra mim não eram prazerosas pelo trauma, hoje são minhas favoritas! Minha vida mudou. Eu chorava com cenas de estupro em um filme, por exemplo...evitava assistir esse tipo de coisa, me escondia. Hoje assisto, claro que com a revolta de ver um FDP fazendo aquilo, mas com pena da moça do filme e não com pena de mim. Não mais. Dentro de mim a raiva e o ódio que sentia do cara que fez comigo, passou... ele hoje não fede e nem cheira! Você me fez descobrir que sou maior que o fato, eu defino a situação e não a situação me define... é isso!

Entende como há alternativas, como é possível conseguir usar exemplos de outras pessoas de forma positiva, sem que você tenha que pensar que “fulano tem mais problemas que eu” ou que seu problema é menor? Não estou minimizando o seu problema ao citar outra pessoa: estou justamente dando o devido respeito a ele e te mostrando que é possível buscar inspirações. Há um estranho alívio ao saber que não é a única a sofrer por coisas parecidas.

A primeira coisa que tem que fazer é: parar de ver que se prostituía. Você era aliciada e isso tem diferença. Usar esse termo “se prostituir” impõe a você uma realidade pesada e alivia a culpa de quem realmente é culpada: sua tia! Mesmo que tenha durado até a adolescência: você fazia obrigada, sob o manto do medo da condição que lhe fora imposta. E mesmo que o sexo tenha se tornado depois algo inconsequente e, por vezes, promíscuo: não foi uma decisão sua, lhe tiraram o poder de escolha e o status acabou se estabelecendo de forma errada no seu cotidiano. Era o que você tinha de referência, mesmo sendo uma referência errada e deturpada. E não por sua culpa...

Quando diz que por vezes aquela menina volta, sinta que ela faz isso não pra te jogar na cara tudo o que você fez: ela volta pedindo sua ajuda, para libertá-la dessa imagem pesada na qual a prenderam. Você ainda a vê como uma prostituta, por isso sente que ela volta te jogando tudo na cara. Pegue essa menina pelo braço, coloque-a no colo e a ouça. Faça com ela o que você gostaria que fizessem por você naquela época: proteja-a, não a condene a esse inferno. É pesado demais para ambas, vocês não merecem mais disso em suas vidas.

Os sonhos agitados, o medo de voltarem a te machucar, os cortes... tudo isso reflete a não aceitação do que fizeram e a sua necessidade de superar isso. Mas acredito que esteja fazendo da forma mais agressiva possível: pra você é ou esquece de vez ou nem tenta começar a superar. Esse extremismo te joga justamente no extremo ruim da situação: você surta, perde o foco, não respira e corre buscar paliativos para te aliviar. Era assim quando quebrava tudo, é assim quando quebra as barreiras de sua pele com suas lâminas.

Só que é assim: nem tudo o que fez causou essa bagunça toda em você. Talvez esteja buscando nessas referências de um trauma passado uma fuga para não ter que lidar com alguns conceitos que existem em você independente do que tenha te acontecido. Comece a elencar tudo o que te incomoda e te causa dor e revolta e veja até que ponto isso tudo existe por conta do que sofreu desde a infância. Ao ver que nem tudo está conectado, conseguirá deixar alguns elementos desconectados desse problema e verá como pode resolver um de cada vez.

A primeira coisa a fazer é parar de sentir raiva daquela menina e, ao mesmo tempo, não sentir mais pena de você, misturando esses sentimentos de forma tão pesada. Não irá esquecer de uma vez, tampouco deixará de ter os pesadelos... mas isso irá diminuir conforme for se conformando em ver que nada irá fazer poderá mudar o que aconteceu, mas mexerá na sua vida a partir de agora.

Quer uma boa fonte para te ajudar a superar isso? Seu filho! Mostre para ele como uma mulher deve ser tratada, eduque-o para ser aquele que vai neutralizar os efeitos de todos os que passaram por sua vida e que tanto te machucaram. Seu filho será a resposta sua para todos esses monstros que ainda aparecem à noite em sua cama. E você será responsável por isso: pegará o mal sofrido e devolverá em exemplo de ser humano a ser criado por você. É assim que irá resgatar a autonomia sobre você e seus desejos e seus pensamentos. Queira estar viva e lúcida para ver se superando de todo mal através do bem que fará ao criar um homem de verdade.

Quer tirar esse poder todo que sua tia e a todos que te machucaram têm sobre você? Mostre, dentro de você, que não vai mais deixá-los te aliciar dentro de você. Se deixar isso ainda acontecer, estará dando a eles o gosto da vitória sobre você.

Citei o diálogo no começo do texto pra você entender como há uma solução. Não há uma fórmula ideal, só você é capaz de encontrar os corredores certos que te levarão pra fora dessa clausura onde as mantém reféns de vocês mesmas. Muitas encontraram, você também encontrará. Apenas não desista. Ela está aí dentro esperando você dar-lhe a mão para ambas conseguirem respirar aqui fora. Por que não?

É foda? Pra caralho. É puxado? Mais do que imaginamos. Mas é possível.

4 comentários:

  1. Anônimo disse...
  2. É, eu tenho que concordar, superar traumas é realmente fóda, mas é possível. Ter com quem conversar ajuda, ou pelo o menos me ajudou, mesmo que seja alguém que você não conheça, e que o único contato seja através de um computador...

    Minha cara, foça, você ainda vai superar isso!

  3. Bruna Salis / www.facebook.com/brunasalis disse...
  4. Querida, você é uma vencedora e uma guerreira por ter chegado até aqui. poucas pessoas dariam uma nova vida à própria vida como você o fez. eu bato palmas pra você!
    seu sentimento e seu sofrimento são legítimos e únicos e merecem ser ouvidos com respeito. Sobre terapia, eu recomendo que você deve buscar outro profissional. Não tome este por base. Tratamento terapêutico é importantíssimo e há profissionais e profissionais. Em casos assim, recomendo muito profissionais da área de PNL (Programação Neurolinguistica). A abordagem desta linha legitima o sentimento da pessoa, dá valor e não acusa e nem reprime.

  5. Anônimo disse...
  6. Eu sou a prova maior de que tudo é superável, pode demorar, mas esse momento chega quando tudo se encontra e acontece na hora certa, voce tem qye querer e estar preparada pra ser ajudada (no meu caso eu queria sair desse buraco e encontrei o Felipe que me arrancou dele). Foi infalível...uma vida nova estava a minha frente e eu apenas abracei assim que pela primeira vez depois de anos eu pude respirar. Nao desista nunca, sei que dentro de voce esta essa força, escondida em um canto...vá buscá-la!!

  7. Anônimo disse...
  8. Querida, nosso caro Ogro consegue colocar em palavras tudo aquilo que sentimos e nos faz entender que esse medo e esse trauma gigante nao deve dominar e controlar nossas vidas. Ele tem toda razão quando diz que não ha uma formula ideal e só voce pode encontrar o seu caminho, mas nao deixe de lutar, procurar e buscar sair desse mundo que se criou e que nao é o que acontece aqui fora.

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