“Ele entrou no trem lotado, de costas e me puxou pra junto dele. Tive todas as partes do meu corpo tocadas”

Posted: | por Felipe Voigt | Marcadores:
Querido Ogro!

Estava desabafando meu problema com uma amiga e fui presenteada com o seu blog. Há tempos procuro um lugar onde possa colocar pra fora todo esse rancor que me persegue e aliviar meu coração. Só de ler as histórias em seu blog já me senti diferente, tem tanta gente com um peso maior nas costas que a gente se envergonha de carregar os nossos como se fossem os mais pesados do mundo. É difícil escrever pra você. Já relatei minha história pra muita gente, mas aqui falo na primeira pessoa, não como se estivesse contando a história de alguém, como acontece normalmente.

Eu costumava ser feliz. Apesar dos problemas familiares, eu costumava ser normal, ser espontânea, ser positiva. Sempre fui aquela pessoa que chega à festa e todo mundo sabe que chegou, que nunca dispensava um sorriso ou uma companhia....E nunca costumava ficar solteira. Sou extremamente visual nas minhas memórias, e como você vai perceber no meu relato, tenho muitas memórias fotográficas dos momentos que vivi.

Em 2006 eu já namorava há quatro anos e era completamente apaixonada pelo meu namorado, apesar de viver uma relação doentia e desgastada. Em meados de abril daquele ano, sofri um acidente de ônibus. A motorista não viu outro ônibus parado no ponto e não desviou a tempo. Atravessei o vidro da frente do ônibus e sofri traumatismo craniano. É engraçado porque as pessoas acham que você apaga na hora, mas eu lembro inclusive do mundo girando antes de bater no vidro, e dos meus óculos atravessando a rua. Quando voltei pra casa, ainda de cama, questionei meu namorado o porquê ainda não ter me visitado. Ele disse que tinha horror de hospital, mas que também não poderia me ver aquele dia pois tinha futebol com os amigos e já havia pago a quadra, logo, não ia perder dinheiro. Pra mim aquilo foi o fim. Não bastasse isso, ele apareceu depois do jogo, com o time todo em casa, e não subiu pra ver como eu estava. A relação começou a decair e terminei duas semanas depois. Passamos três anos entre declarações e sofrimentos.

Em 2009 foi diferente. Estava com síndrome do pânico há algum tempo, ainda por causa do acidente: em alguns períodos me recuperava e levava uma vida normal, em outros me trancava em casa e não conseguia sair no quintal. Passei seis meses em casa, no auge da crise neste ano. Em meados de fevereiro reencontrei um amor de adolescência, que eu acreditava ser a salvação dos meus problemas.

Começamos a namorar em abril, depois de declarações devotas feitas por ele. Recuperei aos poucos a vontade de sair e aos poucos a vida foi voltando ao normal. Precisava de um emprego, de uma vida como a de todo mundo. Em junho consegui! Estava radiante, a empresa era boa, e eu tinha todas as oportunidades de crescimento que eu precisava pra começar a vida que eu buscava; apesar de não ser na área que eu tinha estudado era o que eu achava que podia fazer, já que estava afastada do mercado a tanto tempo. Mal sabia eu que o inferno estava só começando.

Na quinta-feira da minha primeira semana no trabalho fiz tudo como sempre. Estava frio, e eu fui trabalhar com um sobretudo. Parte do meu trajeto era feito de trem. Na porta da estação fui abordada por um homem de social, com o terno nos braços, me fazendo uma pergunta. Eu estava com o fone de ouvido e, quando tirei pra perguntar o que ele queria, ele me abraçou com o braço do terno e encostou um objeto na minha cintura, pedindo pra eu me calar e entrar com ele na estação. Imaginei que fosse um sequestro relâmpago, um assalto, qualquer coisa do gênero, já que isso virou ação corriqueira em São Paulo. Até o momento em que paguei o meu trem e me pediu pra passar. Aquilo não era um assalto. Assaltantes não pagam a passagem de quem estão assaltando. Às 18h as estações estão lotadas. Enquanto o trem não chegava ouvi todas as coisas mais nojentas que jamais pensei ouvir de alguém (hoje me pergunto como existem pessoas que tem fantasias sexuais com esse tipo de coisa).

Ele entrou no trem lotado, de costas e me puxou pra junto dele, me deixando encostada na porta. Foram os 10 minutos mais agonizantes da minha vida. Nem atravessar o vidro do ônibus foi tão assustador. Tive todas as partes do meu corpo tocadas enquanto continuava ouvindo os absurdos que ele falava, e não sei dizer o tamanho do vazio que dá se sentir exprimida por milhões de pessoas dentro daquele vagão e nenhuma perceber a loucura que você está vivendo. A estação seguinte era exatamente a que com maior fluxo, e fui jogada pra fora do trem, conseguindo me soltar do filho de uma puta.

Quando percebi que ele não me abraçava mais, corri até o final da estação, tentando fugir. Ele correu atrás. Quando ouvi o sinal de fechamento da porta corri pra dentro do vagão, rezando pra ele não entrar junto. Ele não conseguiu entrar, mas ficou na porta me encarando e rindo. Não sei como cheguei em casa. Sei que encostei na porta do outro lado e cai sentada na estação quando a porta abriu. Tomei cinco banhos aquele dia. O nojo e a sujeira não iam embora do meu corpo, e continuaram lá por algum tempo.

Fiquei um dia afastada do trabalho, porque tinha que fazer o boletim de ocorrência e todas as burocracias mais. Ironicamente fiquei noiva no dia seguinte. E solteira três meses depois. Meu namorado nunca mais tocou em mim. Nem de mãos dadas eu conseguia sair.

Não bastasse todo o fardo emocional que esse canalha me presenteou, volto ao escritório na segunda e começo a receber e-mails, ligações e convites de almoço executivo de dois chefes da empresa. Eu não sabia mais como reagir. Minha família cobrava que eu continuasse no emprego, o salário era bom e pagava todas as regalias que eu sempre tive. E eu não conseguia mais me abrir. Não conseguia contar em casa o porquê queria sair, tinha vergonha, afinal, na minha cabeça, a culpa era minha. Eu era magra, bonita, chamava atenção. Fui eu que causei todo esse mal.

Engordei 35 kg em três anos. Não saí da empresa. E quanto mais eu engordava mais os convites vinham, mais a nojeira continuava. É fato. Eu só fui violentada fisicamente no trem, por um estranho. Mas vivi três anos de violência psicológica no trabalho. Não aceitei nenhuma promoção, nem cresci na empresa como pretendia. Tirei tanta licença médica que parecia uma doente crônica. E com as licenças o assédio moral do resto dos funcionários crescia também. E eu continuava calada. Não tinha coragem de falar, era como se eu fosse viver tudo de novo. E eu não queria.

Foram três anos de aflição que eu estou me libertando neste e-mail. Em fevereiro entrei em licença pelo INSS e não retornei. Contei pra minha família, pra minha psicóloga e decidi fazer por mim. Perdi 20 dos 35 quilos que engordei. Voltei a olhar no espelho. Depois de três anos sem deixar ninguém encostar em mim, estou namorando um cara maravilhoso que entende todos os meus medos e me ajuda a ser melhor. Voltei a ter relações. Mas o vazio continuava ali. Eu precisava arrancar isso. E esta semana tomei coragem. Liguei pro dono da empresa e pedi as contas. Me desvencilhei do meu maior pesadelo. Da empresa e dos seus cretinos, do caminho diário pra casa relembrando aquele filho da puta.

Continuo com medo. Encontrei alguém capaz de me ajudar a enfrentar tudo isso, mas até que ponto ele vai ser forte o suficiente pra não cair fora feito meu ex? Tenho medo que o peso da minha história me faça perder alguém que tem me dado forças pra me recuperar, que me reensinou a amar. Mais que isso: me ensinou a me deixar ser amada, depois de tantos relacionamentos falidos e traumas.

Sei que foi longo e peço desculpas, querido Ogro. Mas você está me libertando de uma dor que não me deixa viver desde 2009. E sou imensamente grata por esse tempo que perdeu lendo essas linhas!

Abraços com carinho.

Minha cara desabada,

Finalmente desabou esse castelo de dores que te refugiava da vida há anos, hein? Chega uma hora em que todos construímos esses castelos, como uma fortaleza segura das dores que por ventura virão com o passar dos anos. Mas é um castelo feito de vários tijolos atirados e não recolhidos. É como se o que já tiver doído for o suficiente para evitar novas dores.

E qual o principal problema com esse castelo? Ele não permite que as dores antigas sejam dissipadas ou, ao menos, amenizadas. O medo de doer de novo é tão foda que preferimos nos agarrar ao que já doeu, ao que é normal para nós. Mas não é natural...

A gente não precisa desses castelos. Esses muros impedem que a vida chegue até você. O que é um cercado dado como seguro, é apenas um foco de amarguras, dores e agonias. E dificilmente alguém conseguirá transpor tais barreiras para te resgatar. Mesmo que tenha a intenção, é um peso muito foda e talvez você mesma não queira esse peso para outra pessoa.

Vejamos: uma “simples” ocorrência de molestamento te causou isso. Aos olhos de outras pessoas, isso não é nada de mais e nem é pra causar tanto trauma. De fato, poderia ser pior. Mas foi angustiante o suficiente para te abalar da maneira como abalou. Talvez fosse em outra época, o impacto seria diferente. Mas você já estava debilitada emocionalmente há anos e isso foi o ápice para te jogar na vala por outros longos anos.

E essa porra de vala emocional adora nossa miséria. Foi ali que construiu seu castelo.

Você é uma prova de que qualquer tipo de violência pode deixar sequelas incrustadas na alma, por menos que seja. E é algo que não pode ser amenizado ou “deixado pra lá”. Não há diferença na mancha deixada, seja em um estupro consumado ou um “simples” passar de mãos. É uma invasão, é retirar de alguém o poder de decisão sobre seu próprio corpo e suas próprias vontades. Você deixa de ter o arbítrio sobre o que é seu e passa a ser refém de um medo e um vazio aterrorizante.

A sensação de insegurança que se abateu sobre você foi devastadora porque não foi em um local a esmo onde nunca mais passaria. Foi em uma zona de constante presença sua e todo dia o mesmo fantasma te rondava pelos malditos trilhos daqueles malditos túneis. E a forma como foi o assédio te tirou qualquer reação a ponto de não suportar nenhum outro tipo de assédio. Muitas mulheres – muitas mesmo! – sofrem o mesmo tipo de assédio no trabalho, mas com você havia o peso do trem e daquele filho da puta nojento. E ele se tornou quase como a personificação de toda represália sua contra o ser masculino. Ao ser assediada no trabalho, você se sentia novamente tocada como no vagão. E sua reação era a de querer fugir mas não ter para onde ir. Não conseguiu fugir do trem, não fugiu do trabalho... e ficou presa em algo muito torturante por tempo demais.

Ao engordar, se tornava “feia” para você mesma e, com isso, achava que seria feia para outros e isso evitaria os assédios. Mas há muita gente com caráter debilitado que adora alguém debilitado emocionalmente. Há uma doentia atração por alguém que está quebrado. E por isso o assédio crescia: por te verem exposta ao tentar não se expor. Sim, há muita gente doente nesse mundo... talvez os “normais” sejamos nós, viu?

Acumulou demais e teu corpo respondeu da mesma forma: com acúmulos do que você não precisava. Nesse tempo todo, quantas vezes não vomitou ao chegar em casa ou ao lembrar de tudo no meio da noite? Era uma maneira de botar pra fora aquilo que não conseguia verbalizar. O corpo cobra um preço muito alto por esses acúmulos emocionais.

Mas agora você está voltando ao que considera ideal. Está buscando respirar e começou a sair do castelo. O medo é mais do que natural: é necessário. O medo é o que nos torna vivo e nos mantém aquecido. É o que te faz trancar a porta de casa, travar o carro, guardar dinheiro no banco e pagar plano de saúde. Sem o medo, viveríamos muito menos.

O problema é quando o medo vira pavor. O pavor engessa, te trava as pernas e a garganta, te impede de andar e de gritar. O medo é receio, o pavor é temor. Um é benéfico para te dar garantias; o outro é um bloqueio maléfico. Um é o passo parado para analisar o cenário; o outro é um passo atrás, para fugir de qualquer cena.

Queira mais para você. Lembre-se que, apesar de serem padrões, os homens que te fizeram mal podem e devem ser uma exceção. Não deixe que esses monstros ditem a forma como você vai viver. Não dê aos demônios que carrega dentro de você o gostinho de te ver sob poder daquelas mãos, daquelas propostas, daqueles olhares. Abaixe a cabeça, chore em silêncio, sinta a dor apunhalar novamente, mas levante um pouco a cabeça, olhe para eles e mostre o dedo do meio e mande um “foda-se” libertador!

Derrube mais esse castelo e mantenha as ruínas visíveis para te lembrar que é preciso precaução para te acolher. Só que queira se sentar no chão, fora do castelo, apenas para se permitir acreditar em algo novamente. Que tenha alguém do lado para te ajudar, como está tendo agora. Se ele não aguentar, paciência: outros virão. Não saberá se o outro vai suportar até se permitir deixar coisas para trás também e se desapegar dos antigos medos racionais e seguros. É bom andar pela rua com dúvidas e precauções sobre quem te cerca, mas é melhor ainda ter uma mão para segurar quando o medo rondar novamente em forma de pavor.

5 comentários:

  1. Anônimo disse...
  2. O melhor vc já conseguiu fazer, que é desabafar, desabar, buscar ajuda e colocar tudo pra fora. Alguns pequenos e grandes traumas nos acompanharão pela vida,o importante é não deixar-se dominar por eles.

  3. Anônimo disse...
  4. Atrávez da minha experiència, calculo que 99,9% de humanos adultos no planeta terra já sofreram algum tipo de violência. Seja em casa, na escola, na estação de trem, um local público onde todos sem exeção temos como direito natural nos sentir seguros e protegidos. Algo que nunca vou entender, o por que não podemos dormir tranquilamente quando temos sono seja na rua, no onibus, na calçada. Amiga anônima a qual nãi conheço, deixe esse novo amor te acompanhar em sua nova modelagem interior, não duvide da força dele, permita-se amar e ser amada á sua maneira, devagar, suavemente. Foi assim comigo, o pânico teima em aparecer ainda, mas eu não vivo mais em pânico. Um dia essa dor também vai passar, e você estará lapidada, tal como uma criança iniciando os primeiros passos. Parabéns pela sua força, todo e qualquer ser humano é tão imenso que a limitação fisica costuma confundir uma consciência e espiriti brilhante, vc consegue ir além das periférias corporéas e sociais, incluindo emocionais. Eu acredito em vc.

  5. Anônimo disse...
  6. Como consegue ser tão humano Ogro...Amo suas palavras!!!

  7. Anônimo disse...
  8. Vc é um psicólogo nato... querido ogro,vc consegue ajudar a tanta gente de uma forma tão natural... vc realmente e d+.. bjs meu querido

  9. Anônimo disse...
  10. ..mais gracas a Deus voce conseguil se sair desse maldito tarado ,nao se esqueca disso.O problema estar mais pro lado pisicologico q vc ja havia enfrentado antes..e qualquer decepicao ou algo que ti aconteca desliza tudo de novo.

    Eu tb ja passei por dois momentos desses , e digo-lhe com todas as letras é nojento , a gente se sente preza facil, sem nem ser-mos!

    e todas as duas foram dentro de transporte coletivos!esses tarados sem escrupulos ,nao se intimidam mesmo né?!Sacanas duma figa!!vou narrar pra vcs !
    A primeira delas eu tinha 17 anos e estava no onibus com meu pai..ele sentado na janela e eu ao lado..o canalha chegou enconstou seus trocos no meu ombro e la ficou rosando ate ele quase Gozar..alí no meio de todo mundo!!Horrivel vc querer gritar e nao poder!!e é como vc disse , estar alí no meio de uma multidao e pareci q ninguem ta vendo!!Eu logicamente q me sentie mal assim como vc..e demorei a esquecer..mais pensei poxa..eu tinha q levar minha vida ué!!

    ..e quando menos espera lá estou eu de novo sendo lavo de mais um sacana, sendo q esse !? aaah !! esse se ferrou!!hahahaha...!!
    Bem foi assim peguei o onibus como de costume pela manhan , lotado e eu em pé com meu material da escola..apareci um homen por tras e susurra ao meu ouvido me der suas coisas pegou minhas coisas e deu pra uma mulher q tava sentada a cadeira a minha frente segurar..eu logico q fiquei sem acao!entao ele comecou a se encostar nas minahs costas e a rosar..e falava coisas ao meu ouvido!!e eu me tremie e disse para mim..AAH nao de novo nao!!mais gracas a Deus ele tevi q descer e foi um baita Alivio para mim!mais eu cheguei em casa contei o acontecido e no outro dia foi meu irmao e uma turma de amigos dele com pe de pau e me pediram pra q eu podeci apontar o cara q fez isso!!por milagre ele apareceu no ponto pois eu fixei no rosto dele!!e todos correram atras desse infeliz!!por sorte nao pegaram!!
    Eu juro q eu nao queria ter passado por nada isso..mais me sentie forte contando tudo isso q tinha me atormentado e feliz da conta com a reacao das pessoas amadas !me sentie protegida no momento!!risos!!seja forte e levante a cabeca!!vc se saiu do canalha sozinha !!sinta-se ORGULHOSA de vc!!bjs e forca!!
    pois estes vermes estao em qualquer transporte coletivo , em qualquer esquina eles estao soltos !!valeu..

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