“Passei a me esfregar com bucha constantemente durante os banhos, para tirar toda aquela sujeira de mim”

Posted: | por Felipe Voigt | Marcadores:
Digo de cara, não vou começar com meu querido ogro mas sim com:

Era uma vez, uma história que se repete com muitas mulheres e crianças, desde que o mundo é mundo onde certos homens tem prazeres estranhos. Porque isso explica muita coisa... O silêncio foi agregado à um corpo magrelo tempos atrás. Tornou-se meu, quando que de imediato precisei conviver com a dor sozinha. E de mim, foram arrancados os direitos, violados por um alguém, um alguém maior que eu.

Um dia de domingo e uma casa de avó, o suficiente para ladrilhar uma lembrança que desejo todos os dias esquecer. Uma mão percorreu o meu corpo ainda de menina. Eu não queria e não fui questionada. Senti medo, um medo maior que nós dois, não me lembro de ter movido um músculo sequer, de não ter pronunciado palavra alguma. Mais tarde chorei sozinha no meu quarto. Chorei por me “permitir” sentir dor, vergonha, culpa, por ficar confusa e deprimida. Alguma coisa dizia na minha consciência que isso não era correto e passei a me esfregar com bucha constantemente durante os banhos, para tirar toda aquela sujeira de mim. O que significava tudo aquilo? Ninguém havia me explicado aquela situação, nova e diferente que invadia cada pedacinho de mim.

Não há ser humano no mundo que será capaz de entender sem ter passado pelo mesmo. As repetições, os avanços nas investidas, o medo, o segredo, os pesadelos durante as noites, o choro frequente e uma tristeza que doía a alma. Me perdi milimetricamente e me redescobri em um mundo que eu mesma criei. Desconfiada, antissocial, crítica, rebelde, outras vezes apática, medrosa...

Hoje, é tão claro o estrago na minha vida que consigo identificar fase por fase com precisão.

Com 15 anos beijei a primeira menina e me senti aliviada por não ter um pênis na relação, mesmo assim não permiti que fosse tocada por ela. (Um dos casos). Me cortava com um estilete e passava horas trancada no quarto, desejando ser feia e que nenhum homem olhasse pra mim. Com 20 comecei a bulimia. Isso é um fato, não sou e nunca foi gorda, nem gordinha. É que dentro de mim estava tudo ferido e confuso! Não me encaixava em um modelo da sociedade, estava deslocada demais para conversar com alguém e precisava buscar prazer em outras coisas, como nos alimentos.

Não consegui me relacionar sexualmente com meu primeiro namorado. E fugia dele em todas as oportunidades que apareciam. Finalmente, Deus me deu de presente e um homem bom, compreensível e preocupado em me entender. Meu segundo namorado. Lembro dele me explicar no MSN quando conversávamos no início da amizade: “Não: sexo é gostoso e tranqüilo”.

Me vi disposta a tentar e não parecer um problema, todos já tem seus próprios problemas e não precisam de mais um. Só que... estava muito além de mim. Porque não é simplesmente deixar acontecer, é preciso contribuir para que aconteça. E como explicar ao seu namorado o porquê de não querer/sentir vontade de transar? Lembro de falar mais de uma vez: É porque dói. E dói mesmo, não só o físico, dói muito mais aqui dentro!!

Fiz avanços e depois de muito tempo consegui ficar sem roupa na frente dele, com ele me olhando e desejando, sem me sentir mal. Consegui sim, sentir prazer. Consegui ir ao ginecologista pela primeira vez. Mas não sei como fazer para que isso se torne algo natural, onde eu consiga tomar a iniciativa, e não fique com medos, que não tenha problema em me expressar verbalmente, em discutir uma relação e em quebrar o meu silêncio. Fico paralisada diante dessas situações.


Minha querida cronista,

Seu texto é uma crônica-desabafo foda pra caralho. Isso mostra que, apesar da dor, consegue verbalizar isso de uma forma coesa e lírica, até. Sinal de que já se viu presa no cíclico questionamento: o que fazer, porra?!

Aquela sensação que te acomete do nada, te derruba em choro e te faz perder o fôlego. Te joga na cama, no sofá, no chuveiro... te cansa o corpo até você desmaiar de cansaço e de tanto chorar, não?

Sim, a história contada se repete com tantas pessoas e cada uma reage de uma forma, apesar de haver semelhanças nos comportamentos. Aquele que se retrai acaba agindo no mesmo ímpeto daquele que se solta: ambos tentam se jogar pra fora da sensação e do caos mental-emocional. É como se precisasse ser menos você pra poder conseguir voltar a respirar.

Mas justamente essa fuga do que somos é o que causa tanta consternação. Não dá pra superar o que somos: conseguimos apenas superar, de alguma forma, aquilo que nos castiga.

Você se modificou fisicamente por ter sido remodelada emocionalmente em um dado período da sua vida. Tua emoção, tua sensibilidade, tua concepção e percepção das coisas foram afetadas e com isso entrou no cíclico combate contra você mesma. Tem duas pessoas brigando aí dentro de você: aquela de antes e essa de depois do trauma.

Ao se recordar da sensação que sentiu naquele dia, naqueles dias, você acaba não querendo ser mais o que você é e fica nesse conflito. Mas vai perder para você mesma, uma hora ou outra. Então está na hora de dar um fim nessa guerra... Faça as pazes consigo.

Sim, se cortar era bom.
Sim, sexo é gostoso e não precisa doer mais.
Não, nenhum ser humano entenderá sem passar por isso.

E o que fazemos com tudo isso? Lamentamos? Deixamos o trauma transformá-la em uma pessoa traumatizada? Não... não faremos isso.

O que fazer, então, para que tudo se torne natural? Comece a matar um pouco aquele que te causou isso. O assassine dentro de você. Todos os dias, se for preciso. Tenha raiva, tenha ódio, mentalmente devolva tudo o que de mal ele te causou. Seja cruel, seja sádica, sorria ao imaginar o sofrimento dele. Queira que ele morra para assim conseguir matá-lo dentro de você.

É radical? Não... É fácil? Óbvio que não! Mas é preciso tirar esse poder das mãos dele. Você tem o dever de resgatar o controle sobre suas ações e pensamentos e sensações. Ele não é dono disso. Você é!

Quando começar a se ver maior do que ele, quando começar a sentir que tua vida não é esse seu passado, talvez consiga realmente criar a coragem de transformar tudo em algo natural.

As lembranças existirão, a dor sempre irá surgir em algum lugar... e quando isso surgir, escreva! Tua prosa é linda e isso pode ajudá-la a encontrar respostas onde nunca cogitou buscar. Escreva, digladie-se, crie cenários, reverta situações. O papel será seu pior amigo, mas seu melhor aliado...

Transforme essa dor em linhas, preencha esse vazio com parágrafos. Será preciso mais do que uma página... serão muitas, inúmeras. Mas a superação surgirá e você terá um final surpreendente para o livro que a tua vida espera que escreva.

4 comentários:

  1. Anônimo disse...
  2. Parabéns pelo seu texto "cronista". É muito dificil ver qualquer lirismo em uma história tão triste, mas ele nos ajuda a maquiar e nos protege das palavras reais que usaríamos pra descrever a atrocidade a que fomos expostas.

    Acho importante matar o sujeito que fez isso com vc, matar mentalmente, antes que ele te mate. A culpa não é sua, é dele... Quem precisa de uma banho de bucha de prego é esse infeliz...Dê-o.

    Eu dormi por anos com uma faca debaixo do travesseiro e ria cada vez que conseguia visualizar ela cravada no fulano e os olhos dele cheio de pedidos de misericórdia.

    Essa coisa de perdão, de ser maior e benevolente só me fodeu... Não se martirize com isso.

    E você escreve bem, aceite o conselho desse ogro lindo e bota suas dores no papel... Nas piores dores a gente consegue produzir coisas lindas...

  3. Carla de Deus disse...
  4. Sim Cronista, vc conseguiu se expressar de uma forma que outras pessoas gostariam, mas não conseguem. Sim, vc tb tem razão qdo diz que só entende que já passou pq até quem já passou tb não consegue entender muitas coisas.
    Concordo com o Felipe qdo diz pra assassinarmos o causador dessa dor dentro de nós, comigo deu certo! Assim, a dor morre muito também! Cheguei a sonhar que estava matando o fulano de verdade, mas acordei com um dor gigantesca, sentindo que eu tinha deixado que ele me transformasse num monstro completo além de tudo o que eu já sentia até então. Quando ele morreu de verdade, me livrei mais um pouco desse sofrimento, principalmente quando eu lembrava que não tinha nada haver com isso! Comecei a conversar sobre esse assunto com algumas pessoas que escolhia a dedo, e foi mais um passo pro meu progresso! Quando percebi que outras vítimas desses idiotas ou quem, de alguma forma, conviviam com pessoas que passaram pela mesma coisa que eu, consegui me libertar quase que completamente! Hoje consigo conversar sobre o assunto sem me culpar mais, sem achar que todos os homens são iguais e descobri que esse fulano não exerce mais poder sobre mim!
    Te escrevo tudo isso pra que vc saiba que acredito que vc esteja no caminho certo quando desabafa e questiona. Vc vai conseguir! Sexo é normal e delicioso! Boa sorte!!!

  5. Evelyn Paparelli disse...
  6. Querida...sei que no fundo sabemos que nao temos culpa nenhuma, mas mesmo assim esse sentimento é maior que tudo, e enquanto nos culparmos a dor será maior tambem.
    Como Felipe disse, a culpa não é sua portanto "mate" dentro de voce quem a causou...esse é o passo principal para que voce se liberte de tal dor.
    A cicatriz existirá para todo o sempre, mas depois de cicatrizado nao haverá mais a dor. Coloquei tudo que o Felipe disse em prática e posso garantir que comigo deu muito certo, nao foi facil, mas funciona...hoje sou outra mulher, sou dona de meus atos e sentimentos.
    Acredite, a culpa será sua se voce não tentar mudar...portanto tente minha cara. Boa sorte!

  7. Anônimo disse...
  8. O que é isso?! Você disse aqui exatamente o que tenho dito para minha analista ultimamente, e fez melhor, conseguiu por para fora o que eu não consegui, e pude me encaixar perfeitamente nas sua sensações. Com conhecimento de causa eu digo que realmente o processo não é fácil. As sensações de culpa e de sujeira são enormes. E não adianta falarem que a culpa não é nossa, nos achamos culpadas por não termos reagido. E o que marca nossas vidas para sempre, ou até determinado ponto em que nos havemos com isso, é a censura, ou a extrema auto-censura com relação a tudo que é sexual. O que é importante é criamos a capacidade de autonomia sobre nossos corpos, e não nos tornarmos reféns de um crime que cometeram contra nós. Não procuramos nada com ninguém no passado, foi um ser desprezivel que agiu de má fé com a nossa boa fé. Todo ser humano tem prazer ao toque, desde que nascemos até a morte, mas isso não significa confundir o sexual com sexo, o prazer de um toque (carinho) com o prazer genital. Embora em alguns momentos a linha seja tênue. Ficamos marcadas pela censura de que sexo e sexual é errado e sujo, e outras coisas mais, no entanto há a possibilidade de se fazer diferente, de nos permitirmos sermos donas dos nosso corpos, e prazeres. Tenho descoberto que sair da passividade e ser mais ativa ajuda no processo. Falo tudo isso porque é o que tenho tentado realmente acreditar, fácil por em prática não é, mas começar a se despir de uma auto-censura que nos isola do mundo e não só do sexo (sabe bem do que eu falo) acredito que seja um começo.

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